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Julián Fuks

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A vida do escritor - ou o desejo insaciável de existir em estado de palavra

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

24/06/2023 06h00

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Um simpático amigo, desses distantes que nunca conheci, me pergunta como é a vida de um escritor. Tem lido sobre as agruras do ofício, sobre a farta precariedade em que a literatura teima em persistir, sobre a ausência quase absoluta de glamour nessa forma antiquada de subsistência. Mas me viu numa improvável capa de revista e ficou com uma impressão contrária, e parece indagar se ainda existe a possibilidade de viver de livros, desse pobre objeto tão infenso à conversão em mercadoria. Ou se ainda há encanto em dispor palavras numa página silenciosa, discreta até o limite, e ficar longamente à espera de alguma leitura, de um olhar que lhes restitua a vida.

Ao amigo e ao leitor pouparei os tediosos detalhes da minha experiência cotidiana, sobretudo numa semana em que fui pai solo de duas meninas adoentadas, semana em que a dedicação à literatura se restringiu às horas exaustas da madrugada, depois que o sono as vencia. Isso não é a vida de um escritor, afinal, e sim a rotina de um sujeito consumido pelas escolhas que alguma vez fez, escolhas que voltaria a fazer para de novo se deixar consumir, em inescapável sina. Como a existência estrita deste sujeito revela pouco sobre a vida de um escritor arquetípico, prefiro responder por outros caminhos, retratando o que vejo em tantos escritores que me cercam, que acompanho com igual medida de enternecimento e admiração, de aflição e carinho.

- O poeta mais interessante que conheci jamais publicou um livro. Seus versos acutilantes, embora um pouco obscuros, me encantavam quando eu era ainda jovenzinho, me faziam duvidar de se algum dia eu alcançaria tal desenvoltura. Hoje desistiu das palavras, vive numa casa bonita, casou-se, teve filhos, dedica-se às imagens.

- Uma romancista de renome estava em Parati como autora convidada da Flip e cruzou num restaurante com uma mulher que carregava seu livro. Ficou comovida, de olhos umedecidos. Reparou em meu espanto diante de sua comoção, e explicou que aquele era um acontecimento raro em sua vida. Passou o almoço todo se perguntando se devia ir até lá conversar com ela — ela, a autora, convertida em fã da mulher que a lia.

- O prosador mais arguto que já conheci estreou com uma coletânea de contos há vinte anos, o primeiro dos quais me provocou uma impressão fortíssima, que por vezes me pego a procurar em outros livros. Adquiriu alguma fama com isso, mas seus contos seguintes não circularam bem, e dele se passou a esperar que escrevesse um romance. Por mais de dez anos guardou um silêncio disciplinado, abdicou de sua casa, fez-se andarilho. Agora tem um livro novo, um original que muitos editores sequer se dispuseram a ler. Finalmente um romance, que em breve chega às livrarias.

- O homem em que agora penso escreveu um dos maiores romances brasileiros do século. Continuou escritor rigoroso e prolífico, publicando outros romances, ensaios, coletâneas de contos. A cada aparição pública ouve uma primeira pergunta sobre sua obra nova, e então uma infinidade de outras, sempre repetidas, sobre o tal livro inesquecível. É comovente a paciência e o entusiasmo com que ele responde a cada vez, seu empenho em encontrar novas formas de dizer o que deixou escrito há muito tempo.

- Um amigo poeta não procurava editoras, preferia publicar seus livros num selo que ele mesmo criara, artesanal, desenhando os versos em sua própria grafia. Eu sentia que ele fugia de sua promessa, fugia de se apresentar a um público mais vasto. Mas um dia o segui a um sarau de periferia e vi como estava bem acompanhado, vi que ali ele existia como poeta, que era ouvido e apreciado. Aquilo me apaziguou por uns anos, até sua morte precoce de câncer. Deixou uma obra bonita, que ninguém mais lê nem ouve.

- A mulher em que agora penso escreve bem, tem pertinência e verve, já ganhou bons prêmios. Mas não escreve apenas, dedica parte de seu dia a procurar nas redes leitores e leitoras que possam se interessar por seus livros, e a oferecer pessoalmente exemplares autografados que ela mesma envia. A tática é tão bem-sucedida quanto sua escrita: neste momento, pouquíssimos vendem tantos livros quanto ela.

- Um bom amigo acaba de passar doze anos escrevendo um romance, comprometido como poucos, abdicando de incontáveis noites de convívio com os outros, de encontros e abraços e risos. Acabo de ler seu romance, que é a um só tempo prodigioso e carregado de ruídos, livro tão bonito quanto estranho. Li com a entrega que sempre pedem as amizades e senti um encantamento crescente, mas tenho algum temor de que poucos o leiam dessa maneira, e que páginas tão belas só venham a conhecer a sombra.

Paro por aqui, por infinitas que sejam essas histórias. Talvez nada disso fale sobre a vida de um escritor, talvez a vida de um escritor não seja enfim nem dizível nem interessante. Poderia fazer deste texto uma acusação dos problemas do mercado, da clara insuficiência do meio ao qual nos entregamos. Há alguma verdade nisso, mas é uma verdade por si mesma insuficiente. Falar da vida de um escritor é falar, no fim das contas, da presença impossível de um desejo de escrever, contra toda circunstância. Eis a maior razão, creio, para a insatisfação crônica de que padecem os escritores: essa ânsia de escrever apesar da vida de escritor, contra a vida de escritor, esse desejo insaciável de existir em estado de palavra.

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